Ângela Maria Pereira da Silva – Aqui em São Leopoldo nós não temos ainda uma delegacia especializada para o atendimento da mulher, nem da criança, nem do adolescente. O que eu percebo é que cada vez mais nós temos que olhar não só para o espaço institucional, mas para a questão da qualificação, das condições de trabalho das pessoas que atendem os “violentados”. Não adianta termos uma delegacia para a mulher se a equipe não estiver suficientemente capacitada e sensibilizada para realizar o atendimento ao público.
IHU On-Line – São muitos municípios que não possuem Delegacia da Mulher?
Ângela Maria Pereira da Silva – Acredito que tenhamos, aqui no Rio Grande do Sul, em torno de quinze ou vinte delegacias. Então, a delegacia da mulher ainda não é uma realidade se compararmos o estado com São Paulo, por exemplo. Estamos deixando muito a desejar.
IHU On-Line – Como a senhora vê, no caso de Eliza Samudio, o fato de que uma juíza que analisou a primeira denúncia de agressão da moça, mas não concedeu proteção a ela?
Ângela Maria Pereira da Silva – Do meu ponto de vista, como uma assistente social que atua no enfrentamento da violência contra a mulher, a Lei Maria da Penha está aberta a interpretações e, exatamente por isto, por vezes são feitas interpretações equivocadas. Se uma mulher teve uma relação com um homem e daí nasceu um filho, independente de eles estarem vivendo ou não juntos, ela deveria estar sendo amparada pela lei.
Acontece muito, quando se trata da violência de gênero, antes de analisar o fato, surgirem pré-suposições e preconceitos que interferem no julgamento. No caso da Eliza Samudio, a mídia descaracterizou esta mulher dos seus direitos, porque ela tinha um trabalho X, porque tinha relações familiares Y. Enfim, mostrou-a como uma pessoa não digna de direitos. Então, houve um desrespeito em relação a este caso, não só por parte da mídia como por parte do Poder Judiciário.
IHU On-Line – O caso de Eliza é emblemático para compreendermos as relações de gênero na sociedade contemporânea?
Ângela Maria Pereira da Silva – Creio que sim, porque, na realidade, estamos falando de alguém que tem um relativo poder e que já vinha demonstrando, em várias situações, o preconceito de gênero. Parece que isso não foi levado a sério. A prova disso foi a forma como a trataram durante a primeira denúncia que ela fez, quando foi submetida a tomar medicamentos abortivos e foi violentada fisicamente. Por conta disto, me questiono:l qual foi o apoio que esta moça teve do serviço que a atendeu naquele momento Qual foi a rede de apoio afetiva que ela teve? Isso porque, depois das denúncias, ela voltou a confiar neste homem, negando inclusive orientações que a advogada lhe deu. Confiando numa nova promessa, ela vai ao encontro do homem que a ameaçou, sem se resguardar, sem ir com alguém da família ou alguém de sua confiança e, com isso, estava vulnerável ao que supostamente tenha acontecido.
IHU On-Line – Os assassinos de Eliza e da advogada Mércia podem ser considerados produtos de uma sociedade com resquícios patriarcais?
Ângela Maria Pereira da Silva – Sim, podem. Na verdade, eles mostram muito desta esquizofrenia social que vivemos, onde é permitido violar não somente a mulher, mas também a pessoa idosa, os deficientes, ou seja, qualquer pessoa que é dita diferente da maior parte da sociedade em que vivemos. As pessoas não têm paciência, elas sempre estão sendo pressionadas pelo tempo, pelo acúmulo de tarefas. Tudo isso faz com que a pessoa vá se movimentando em um processo de irracionalidade em que não consegue mais entender que o respeito tem que prevalecer nas relações.
IHU On-Line – Podemos dizer que o crime passional é um ato de ódio?
Ângela Maria Pereira da Silva – É, antes de tudo, um ato de posse, de total possessividade em relação a outro indivíduo, é uma despersonalização do outro. Eu posso dizer que eu sou dona da minha caneta, mas eu não posso dizer que eu sou dona do desejo de outra pessoa. E, nestas situações onde a mulhes é assassinada há muito a presença do sentimento de posse, onde o outro não é mais o outro, ela é minha, ela me pertence, se não fica comigo não fica com ninguém.
IHU On-Line – Como modificar os padrões culturais de opressão?
Ângela Maria Pereira da Silva – Temos que pensar nas gerações que estão se formando, porque hoje nós estamos percebendo um nível crescente de violência entre adolescentes. Há mutos casos de, no fim de um namoro, o menino adolescente tirando a vida da ex-namorada, atirando contra a namorada, causando um dano físico ao corpo desta menina. Isso já está acontecendo na geração que está aí. Por isso, temos que atuar na prevenção, trabalhando nas escolas com os pequenos e com as famílias. O atendimento à família faz com que se mude toda uma relação de conflito. Na família pode-se trabalhar todas as diferenças de pertencimento.
Notas:
[1] O Centro Jacobina atende mulheres que sofrem violência física, psicológica, patrimonial, moral e sexual, o centro faz parte da Coordenadoria Municipal da Mulher (CMM). Situado na Rua Lindolfo Collor, 918, o horário de atendimento é de segunda a sexta-feira, das 8h30 às 17h.
[IHU On-line é publicado pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]